quarta-feira, 22 de junho de 2011

AXÉ

Boa noite irmão e amigos

Esta matéria foi me cedida por um grande irmão (filho de Airá), artista plástico que conheci em exposição de arte coletiva. Acredito que alguns podem não concordar, mas a intenção é mesmo discutir o assunto. Espero que leiam e comentem.

Axé: Essência Divina da Existência
©Miguel Ramos


Este trabalho foi apresentado primeiramente na 54tª Convenção Anual da Sociedade Católica Teológica da América para um painel de discussão intitulado "Possíveis Contribuições da Religião Afro-Cubana à Teologia Católica da Graça: Um Diálogo Inter-religioso”. 11 de Junho de 1999.
A Regla de Osha[1] é uma religião trazida a Cuba durante a época do comércio transatlântico por os escravos lukumis,[2] um grupo étnico da áfrica Ocidental, na área que hoje forma parte da República da Nigéria. Os lukumis são chamados correntemente de iorubas, um nome originalmente aplicado a um grupo lukumi em particular, o Oyó.[3] A presença lukumi em Cuba e no Novo Mundo era minoritária antes do século XVIII.[4] O incremento da presença de escravos lukumis em Cuba coincide com a eventual queda do poderoso Império de Oyó, na África Ocidental, no século XIX, resultado das sanguinárias contendas e da guerra interétnica. Um número indeterminado de prisioneiros de guerra de Oyó e de seus protetorados foi vendido como escravos e levados a Cuba e Brasil,[5] os então maiores importadores de escravos africanos no Novo Mundo.[6] Através de uma ardilosa adaptação, re-interpretação e assimilação da nova cultura e seu entorno, os lukumis preservaram a sua religião e cultura a despeito da aculturação centralizadora europeia.[7]
De extrema importância neste processo foi o conceito lukumí/ioruba de axé - a crença em que tudo está dotado da divina graça do Ser Supremo. O axé é uma força mística, geradora e todo abrangente que fortifica o sistema de crenças e serve como principal ferramenta de adaptação, garantindo o desenvolvimento e a sobrevivência da religião. A crença no axé tem permitido à religião lukumi suportar o peso da escravidão, do colonialismo e das muitas escaramuças encontradas mais recentemente na Revolução Cubana. Nos Estados Unidos, onde a religião lukumi tem abraçado e incorporado muitos povos de diferentes culturas e nacionalidades, o axé também tem demonstrado ser crítico na adaptação e sobrevivência da religião e também, um meio para a compreensão de uma visão de mundo dos povos estrangeiros, diferente da cubana e do culto aos orixás.
Axé
Os lukumis adoram um Ser Superior conhecido por Olorun—Dono dos Céus; Olodumarê-Dono das vastas expansões do universo; e às vezes Olofín—Dono do palácio celestial.[8] A tradição oral mantém que antes da criação do universo, Olorun existia somente na forma de axé, uma energia geradora da força vital. Com o tempo, o axé assumiu a consciência daquilo que chamamos de Olorun, de universo e tudo o nele tem nascido. As vastas expansões do universo incipiente reverberaram com a energia desenfreada e doadora de vida que faz com que tudo seja possível, e a existência começou a prosperar e a se propagar. Os orixás, divindades que através e com o axé assistem a Olorun nas tarefas do universo, são os primeiros seres antropomórficos que resultaram do axé. A maioria dos lukumis considera os orixás como personificações das qualidades divinas de Olorun. Este é o seu rol como mediadores entre a humanidade e o Ser Supremo.
A criação da humanidade foi delegada a Obatalá, o deus da pureza e sênior dos orixás. Obatalá, o primeiro descendente de Olorun, é o seu representante direto na Terra. Ele é o Alabalaxé, ibikeji Olodumarê— Aquele que sustenta o cetro do axé, preposto de Deus. [9] De acordo com a tradição oral, Obatalá moldou os seres humanos do barro. Um dos nomes de louvor de Obatalá é Alamoreré o escultor. Porém, somente Olorun pode dar a vida. Somente Olorun pode insuflar o emi—o hálito ou axé que dá vida, e o Eledá—a presença rigorosa e observante de Olorun nas criações de Obatalá.
Os iorubas e os lukumis acreditam que quando o universo foi criado, a cada coisa lhe foi dado o poder do axé, a energia mística da qual dependem as muitas essências de vitalidade e de existência. O axé é poder, energia geradora, força de vida. Estão presentes em todas as coisas, concretos ou abstratos. Humanos, animais, plantas, rochas, cursos d’água, colinas, savanas, arvoram o axé em vários graus, em todos os lugares e em todas as coisas. Longe de ser um Deus remoto, como amiúde é descrito na literatura, Olorun é eternamente presente e ativo, através do axé, em todos os elementos do universo. Deste modo, o axé deve ser entendido como a presença prolífica da Divindade em tudo o que há no universo. Olorun impulsiona a vida e a matéria. Como estas são “filhas” ou emanações da Divindade, ambas são produto e condutoras de axé, colocando um “pedaço” de Olorun e da sua graça em cada elemento do universo. Então, através do axé, Olorun é Onipresente, Onisciente e Onipotente, sempre atento as ações do universo, particularmente com aquelas dos seres humanos.
Em realidade, nenhuma definição é capaz de prover um cômputo satisfatório de tudo o que o axé é e encerra. Por sua própria natureza, o axé é inefável. Não obstante, Pierre Verger tem dado uma das melhores descrições de axé até a data. Aplicando as teorias de Durkheim ao conceito de axé, Verger registra:
. .os iorubas nunca viram o asé (axé), nem pretendem personificá-lo. Nem podem defini-lo por atributos e características determinadas. Ele envolve todo mistério, todo poder secreto, toda divindade. Nenhuma enumeração consegue exaurir esta idéia infinitamente complexa Não é um poder definido ou definível, é o próprio Poder no sentido absoluto, sem epíteto ou determinação de alguma espécie . . .é o princípio de tudo o que vive, age ou se move. “A vida inteira é asé”.
O historiador de arte Robert F. Thompson refere-se ao ashé como o “poder-de-fazêr-as-coisas-acontecerem. . . A própria luz proporcionada por Deus que se torna acessível ao homem e à mulher.”[10] Outros estudiosos se referem a ele como “o poder vital, a energia, a grande força de todas as coisas”;[11] força de vida[12]; força para-divina [13]; força divina, vivificante ou mística[14]; força geradora ou “potencializadora”.[15] Na maior parte, todos coincidem, basicamente, com os mesmos princípios. O axé é tudo, e muito mais, por própria natureza, o axé é existência. Sem axé, nada é possível. Não obstante, nenhuma definição lhe faz justiça, por sua própria essência o axé está além de definições e da completa compreensão humana.
A religião lukumi, como é praticada em Cuba e na Diáspora Cubana é altamente dependente do axé. Para os lukumis o axé é a raison d’etre do universo e o dote mais sagrado e reverenciado da humanidade. O axé é tudo o que foi e será: o axé é eterno. O axé é divindade, vida, existência, essência, poder, energia, vigor, força, vitalidade, causa e efeito, graça, conhecimento, autoridade, sabedoria, experiência; o axé é tudo. O mais importante é que o axé é prontamente acessível e disponível, ideal para o progresso e o bem-estar da criação de Olorun.
Ainda que sua extensão seja incomensurável, o axé como personificação do poder, da energia e da autoridade não está equitativamente distribuído. O grau de axé varia de acordo com o seu anfitrião. Esta noção é exemplificada num mito lukumi muito conhecido, e recitado na adivinhação que descreve a distribuição de axé e de conhecimento por todo o mundo. De acordo com o mito, quando a cabaça da sabedoria caiu das mãos de Ogbedí, o axé e o conhecimento foram dispersos por cada canto da Terra. Cada um e cada coisa sobre os quais ele se inclinou, obteve algum grau de axé, dependendo de quanto foi impelido para áreas particulares do cosmos. [16] Os adivinhos enfatizam que nada deve ser subestimado, desde que o seu grau de axé nunca poderá ser completamente determinado.
O axé é ao mesmo tempo universal e imortal, mas nunca estagnado ou imutável. É uma energia maleável que pode ser reinterpretada e revigorada, constantemente evoluindo e crescendo através do tempo. Os humanos são os principais beneficiários desta energia. Desde que estes prosperaram separadamente em seus meios ambientes, o axé tem sido aprendido, interpretado, entendido e aplicado em diferentes maneiras e em diferentes momentos. Os hindus o chamam de darsan; os chineses falam do Ch’i; na Polinésia foi conhecido por mana. Os seres humanos podem se encarregar desta energia e usá-la para satisfazer suas necessidades, idealmente, para o avanço material e espiritual, individual e coletivo e para o desenvolvimento do iwá— o caráter moral que ordena respeito e reverência. Uma vez em harmonia com o axé, os seres humanos passam a viver suas vidas produtiva e completamente.
Ausente da filosofia ioruba está a popularizada (ainda que não necessariamente correta teologicamente[17])) noção judaico-cristã de uma batalha entre o bem e o mal. Para os iorubas, a dualidade entre um Ser Supremo Onipotente e Sua antítese é inexistente. Olorun e axé são as causas de tudo, seja positivo ou negativo. Olorun é o Alfa e o Omega, Yin e Yang, começo e fim. Bem e/ou mal são resultados de ações humanas e não de uma batalha cosmológica entre duas entidades ou duas forças. Um provérbio lukumi utilizado na adivinhação nos lembra que: Para que haya Bueno, tiene que Haber malo — literalmente, “para que haja bom, tem que haver mau”. O axé é neutro. Ele é “ . . .nem bom nem mau, nem moral nem perverso, nem puro nem impuro, algo mais do que energia elétrica ou nuclear”.[18] O axé é simplesmente um tipo de energia irrefreável que é geradora por natureza; um poder no bruto que quando acessado pelos seres humanos é direcionado, e seu propósito é definido de acordo com a situação particular e/ou com a necessidade individual. É a ação humana, e não a energia por si mesma, o que determina onde e como o axé é usado ou mal empregado.
O iwá (caráter moral) é de extrema importância em seu relacionamento com o axé, desde que o comportamento apropriado na Terra influencia o acesso humano ao axé, tanto na vida presente quanto na ulterior. Olorun monitora a conduta de um indivíduo, durante a vida deste, através dos orixás que mantêm “registros” do comportamento humano. Outra das várias funções de Obatalá é ensinar moralidade e ordem à humanidade, servindo de exemplo a ser seguido por ela. Ele estabelece padrões muito altos de moralidade para seus seguidores e não se refreará ao punir os infratores. [19] Desenvolver o iwá reré- bom caráter moral- requer não somente devoção e respeito por Olorun, pelos orixás e os ancestres, mas também pelos companheiros seres humanos e por todas as criações de Olorun. É importante (e exigido) que o indivíduo seja um bom filho, um bom irmão, um bom pai, um bom cidadão. A pessoa que possui iwá reré deve servir de exemplo para aqueles que a rodeiam ou aos seus companheiros. Estas características são componentes integrantes e indispensáveis do iwá reré.
Contudo, à humanidade lhe foi dada liberdade de escolha. Os humanos são criaturas apaixonadas e às vezes são cegadas por suas próprias paixões. Aqueles que se desviam do caminho apropriado do iwá reré, e empregam mal o axé para maldades ou propósitos pessoais, sofrem as conseqüências de suas ações durante as suas vidas e também após a morte. Assim, ainda que o axé possa carecer de “conotações morais”, tal como alguns estudiosos têm declarado, a importância colocada em desenvolver o iwá reré adiciona dimensão moral ao uso ou desuso da energia de Olorun. [20] Finalmente, ainda, a responsabilidade repousa nas mãos do indivíduo.
Ashé humano
O axé de Olorun reside no ori, a cabeça humana, e Sua presença é conhecida por Eledá—o Criador. Juntos, funcionam como o orixá pessoal do indivíduo, uma espécie de “anjo guardião” ou atendente na vida do ser humano. O Ori também é o assento do destino humano e o maior benfeitor da humanidade. Os iorubas acreditam que certos aspectos da vida humana são pré-ordenados no nascimento. Antes do nascimento, aquele destino é escolhido ao acaso e Olorun comunica Sua bênção ao ori do indivíduo não nascido em forma de axé. No nascimento, Olorun exala axé na forma de emi—hálito e a vida começa. Esta presença dual do Criador nos seres humanos toma a forma de Eledá, a silenciosa, mas observadora testemunha da existência humana que deverá prestar contas no final.
O relacionamento entre ori e Eledá, e o grau de axé que os seres humanos podem possuir, é realçado através da iniciação no culto aos orixás. “Assentando” o orixá na cabeça do devoto, o axé recebido originalmente no nascimento é reforçado pela presença do orixá na vida do indivíduo. [21] O Ori continua a funcionar como assentamento do destino e odo orixá pessoal do indivíduo, enquanto a divindade tutelar adquiriu funções em conjunção com o ori e o Eledá na iniciação, trazendo equilíbrio, harmonia e estabilidade à existência do indivíduo. O potencial humano é aumentado, permitindo ao devoto viver uma vida cheia e próspera.
Os orixás têm a mais estreita proximidade e acesso ao axé de Olorun. Eles são a primeira prole de Olorun, emanando d’Ele através do axé. Cada orixá possui seus próprios domínios nos afazeres do universo e a maioria também esta relacionada aos fenômenos naturais, tais como oceanos, o vento, o trovão e assim sucessivamente. O axé, como manifesto nas forças da natureza, é apaziguado, cultuado e reconhecido como o inseparável elo na delicada interconexão e interdependência que existe entre os seres humanos e seus ambientes naturais. Ademais, a maioria dos orixás supervisa diferentes aspectos da vida e da existência humana, tais como o nascimento, doenças, morte, aptidões, habilidades e assim por diante. O mais importante, os orixás, assim como os seres humanos, possuem tanto defeitos quanto virtudes. Suas personalidades variam do racional ao ilógico, diferindo dos humanos somente pelo status e poderes que Olorun lhes concedeu. Este aspecto faz com que o relacionamento entre os devotos e os orixás, seja não apenas pessoal, mas também prático. Não se espera que os humanos sejam perfeitos. Se os orixás podem errar, também o podem os seres humanos. A perfeição para os iorubas e os lukumis é um domínio exclusivo de Olorun. E às vezes, até Olorun erra.
O relacionamento entre os Olorixás[22] e suas divindades tutelares é pessoal e individual. Os lukumis se consideram omó orixás—filhos das divindades. O Ori e os orixás assistem seus omó para que adquiram axé, intercedendo por sua causa com as forças do universo, assim como um pai interviria a favor de um filho. Eles proporcionam axé com e para o equilíbrio das necessidades humanas.
Os iorubas e suas contrapartes no Novo Mundo consideram a vida e o viver desejáveis. O Orun- paraíso tem seu valor, mas se lhes for dada a opção, a vida na Terra e entre seus descendentes diretos é preferida à vida no além, não importando quão gratificante possa ser o orun. A qualidade de vida é também importante, e provavelmente ainda mais importante do que a quantidade daquela é sempre a possibilidade de reencarnar e de retornar à Terra. Nenhum ioruba ou lukumi quer viver uma existência desonrosa ou insatisfatória na Terra para colher as graças no paraíso. Viver uma vida completa na Terra, rodeada pelos confortos e pelos troféus que Olorun e os orixás provêm como recompensa ao iwá apropriado, é de sumo interesse. Filhos, proteção, nutrição e boa saúde são as irês—bênçãos mais apreciadas. As prosperidades financeiras ou econômicas também são desejáveis, mas são obtidas somente como prêmios pelo bom comportamento ou pelo trabalho árduo. Neste sentido, a ideologia ioruba/lukumi está centrada no presente, no aqui e agora, e o axé é o mais importante dos meios para os fins desejados.
O axé feito tangível
O axé é ao mesmo tempo abstrato e concreto. É importante fazer uma clara distinção entre o, a energia ou força, e os materiais que os Olorixás utilizam em rituais e oferendas possuidoras desta energia, que também são chamados de axé. Ervas, frutas, raízes, animais, alimentos, pedras, solo de diferentes pontos da natureza e assim por diante, são compostos de acordo com fórmulas estabelecidas. A energia mística contida nestes elementos é materializada e sua energia animadora, dirigida a resolver as crises da vida. Esta é uma das mais importantes qualidades do axé, o fato de não apenas existir, mas também de poder ser usado, manipulado e proporcionado para fruição adicional.
Os Olorixás são alaxés-consignados a cuidar do axé e a assegurar que sua força seja reativada e revitalizada sempre que for necessário. [23] Eles contam com um amplo corpo de conhecimento ritual e místico, confirmado primeiramente pela adivinhação e que outorga acesso à energia do axé para cura, desenvolvimento e outras finalidades restauradoras. Ao cultuar um orixá, recitando orações ou cantos, preparando uma infusão de ervas, ou oferecendo um ebó (sacrifício), os devotos atuam conscienciosamente para jaezar o axé e dirigi-lo à solução de problemas e acontecimentos que apareçam na vida. Se canalizado respeitosa e apropriadamente, o axé põe o aflito em contato com a mais pura e mais sagrada das energias, o próprio Olorun.
A comunicação e o alinhamento apropriado entre o orun e o aiyê (Terra) através do axé, acentuam a beneficência do aqui e agora e também assegura ao devoto seu lugar daí em diante. Mas se o axé pessoal do indivíduo está maculado pela conduta ou ações inapropriadas na Terra, a energia Divina é afetada adversamente e os resultados desejados são desmantelados. Idealmente, o impuro ou inapropriado não podem estar em contato com a mais pura das energias.
As representações materiais do axé são veículos, através dos quais os Olorixás servem como condutores desta energia entre o orun e o aiyê, entre o profano e o sobrenatural. Toda planta, todo animal, toda raiz, um tipo particular de rocha, uma pena, água do mar ou de um rio, todas as coisas na Terra são animadas pelo axé e por isto, podem ser usadas para acarretar um resultado em particular. As possibilidades são infinitas. A combinação apropriada destes elementos e seu axé individual são convocados através de orações, invocações, cantos e outros rituais. Se combinados apropriadamente, seu axé coletivo é usado para resolver coisas tais como curar uma doença, ajudar uma mulher estéril a conceber ou, neste mundo “moderno”, garantir sucesso em um negócio arriscado ou na escolha de uma carreira.
O Olorixá deve estar muito instruído na manipulação do axé material, ou seu próprio axé perde validade diante dos olhos de seus seguidores e clientes. Tener ashé—ter axé—é uma qualidade que todo Olorixá deseja, mas nem todos nascem com ela. O axé não resulta somente do nascimento, mas também é desenvolvido e incrementado através de rituais, da conduta e da aquisição de conhecimento e experiência. Ter a irê omá—uma bênção de conhecimento, ou melhor, usá-la e obter resultados benéficos é ter axé. O conhecimento é um dos muitos domínios do axé.
O conhecimento ritual é altamente valorizado, mas também é muito guardado e não facilmente compartilhado. O conhecimento é um axé que nem todos nasceram para ter. Tal como é implícito ao mito de Ogbe’di, todos obtivemos algum nível de conhecimento, mas nem todos o adquiriram por completo. O conhecimento é colocado, dividido, disperso. La sabiduría está repartida! Até expertos em rituais como o Babalawô[24] e o Oriaté[25] não são oniscientes. Muitas vezes podem ter necessidade de consultar outros Babalawôs ou Oriatés e até Olorixás, que podem ter mais conhecimento do que eles a respeito de um orixá ou de um ritual em particular. Ainda, em algum momento da vida, o conhecimento deve ser compartilhado, pois se não for passado aos descendentes, estará perdido, resultando na perda de uma ferramenta valiosa de acesso ao axé. A maioria dos Olorixás possui um ou mais aprendizes, omó’rixás- filhos através dos orixás— de confiança, que preenchem os requerimentos que aqueles estimam necessários para a transmissão do seu conhecimento ou axé. [26]
Afudaxé - o axé na fala.
O axé é especialmente poderoso na fala. Ele é materializado através das palavras, das orações, dos cantos, dos louvores, da adivinhação e da possessão pelas divindades. Na adivinhação, os Olorixás imploram que as divindades lhes permitam entrar em contato como o seu axé pessoal para assistir adequadamente seus consulentes:
Fun mi ashé’lenu lati nsoro Dai à minha língua o axé com que falar.
Nas orações e no sacrifício, o axé é invocado para garantir a eficácia do ato ou ritual:
Ashé tó, ashé bó, ashé bima! O axé é amplamente suficiente, o axé envolve tudo, o axé é nascido!
Ashé ishe’mi! Axé trabalhe para mim!
Ou para extrair a potência de uma erva usada para curar uma doença ou a alma:
Ashé’wé Osayín! Axé (nas) ervas de Osayín!
Ewé ayé! Ervas (da) Terra. [27]
Todos os participantes numa cerimônia lukumi contribuem com uma afirmação: Axé— que assim seja!
O axé de um orixá é especialmente ativo durante a possessão. A possessão é a derradeira forma de contato com o axé e é sua maior personificação no orixá. Do mesmo modo, o conselho dado por um orixá ou o remédio para uma moléstia em particular é dotado com axé, e sua eficácia é garantida pelo fato de o orixá em pessoa ter falado, trazendo a solução a uma crise pessoal. Este encontro pessoal, de um-a-um, entre o orun e o aiyê, entre os humanos e o sobrenatural, é outro aspecto estimado pela religião ioruba/lukumi. O devoto suplica e oferece sacrifício ao sobrenatural, e o domínio se faz acessível de uma maneira muito pessoal através da possessão. O sobrenatural descende ao reino dos seus devotos e desempenha um rol ativo com e dentro dele.
O mau uso do afudaxé pode ter efeitos deletérios para o axé, por ser poderoso nas maldições, especialmente quando elas resultam da injustiça ou da falta de respeito. A reverência dada aos alagbás ou mais velhos na Iorubalândia, bem como no Novo Mundo, repousa primeiramente no conceito de axé, pelo que se acredita que o axé também é adquirido e incrementado com a experiência e a sabedoria que acompanham a idade. Ofender propositadamente um alagbá, não é somente desrespeitoso, mas também extremamente perigoso pelo agravo que pode ter graves conseqüências.
Notas finais
[1] Mais recentemente chamada de “Santería,”, um nome equivocado, com conotações pejorativas.
[2] Me refiro às práticas e praticantes da religião ioruba tradicional como iorubá e uso lukumi, especificamente, para suas contrapartes em Cuba e na Diáspora Cubana.
[3] Awoniyi, Timothy. The Word Yoruba. Nigéria 134-35, 1981; pgs. 104-107.
[4] Vide Philip D. Curtin. The Transatlantic Slave Trade-A Census. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1969.
[5] No Brasil, a religião dos nagôs ou iorubás é conhecida por Candomblé, um termo encontrado pelos nagôs quando chegaram originalmente utilizados pelos bantos para suas associações fraterno-religiosas. Vide Roger Bastide. The African Religions of Brazil. Baltimore: The Johns Hopkins University press, 1970.
[6] Vide Curtin, 1969; Robin Law. The Oyo Empire c. 1600-c. 1836: A West African Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade. Oxford: Oxford University Press, 1977. Pierre Verger. Bahia and the West African Trade (1549-1851). Ibadan: Ibadan University Press, 1964.
[7] Para uma leitura adicional sobre as origens da religião lukumi em Cuba, vide Mercedes C. Sandoval. La Religión Afrocubana. Madrid: Playor, 1975; Isabel Castellanos & Jorge Castellanos. Cultura Afrocubana. 3 vols. Miami: Ediciones Universal, 1988. Para os E.E.U.U., vide Robert F. Thompson. Flash of the Spirit-African and Afro-American Art & Philosophy. New York: Vintage Books, 1984; Joseph M. Murphy. Santeria: An African Religion in America. Boston: Beacon Press, 1988.
[8] Pierre Verger tem argumentado convincentemente que o desenvolvimento da crença ioruba em Olorun como Ser Supremo é com toda probabilidade uma introdução forânea, possivelmente de origem islâmica ou cristã. De acordo com esta visão, o axé e a noção mais próxima de um Deus Criador que existiu na antiga Iorubalândia, antes do encontro com o Islã e o cristianismo. Vide The Yoruba High God-a Review of the Sources. Odu, no. 2, 1966; pgs. 19-40.
[9] Idowu, E. Bolaji. Olodumare: God in Yoruba Belief. Memorial Edition. New York: Wazobia, 1994; pgs. 72-73.
[10] Verger, op. Cit., p. 36.
[11] Thompson, Robert Farris. Flash of the Spirit-African & Afro-American Art & Philosophy. New York: Vintage Books, Inc., 1984; p. 5.
[12] Verger, op. Cit., p. 35.
[13] Drewal, Henry John e John Pemberton III. Yoruba- Nine Centuries of African Art and Thought. New York: The Center for African Art & Harry N. Abrams Inc.; 1989; p. 16.
[14] Hallgren, Roland. The Good Things in Life-A Study of the Traditional Religion and Culture of the Yoruba People. Lund; Plus Ultra, 1991; p. 32.
[15] Apter, Andrew. Black Critics and Kings-The Hermeneutics of Power in Yoruba Society. Chicago: The University of Chicago Press, 1992; pgs. 55, 84 & 105.
[16] Thompson Drewal, Margaret. Yoruba Ritual-Performers, Play, Agency. Bloomington: Indiana University Press, 1992, p. 27.
[17] Vide Castillo, José M. Ifá en Tierra de Ifá. Miami. 1976.
[18] Conversa pessoal com o teólogo católico Orlando Espin. Miami, June 4, 1999.
[19] Verger, op.cit., p. 36.
[20] Vide Beier, H.U. Obatala Festival. Nigéria, No. 49, 1954; pgs 10-28; p. 10.
[21]Thompson, p. 5; Thompson Drewal, p. 27.
[22] Karioxá, literalmente “colocar o orixá na cabeça”, é o nome para a ordenação ritual de um Olorixá lukumi. Parte deste ritual envolve colocar as representações materiais dos orixás e outros elementos secretos na cabeça do devoto. Estes elementos também são chamados de axé e representam a encarnação do conceito transcendente numa forma tangível.
[23] Literalmente “aquele ou aquela que possui um orixá”; sacerdotes/sacerdotisas.
[24] Vide Verger, op. Cit., pgs. 35 & 37.
[25] Literalmente “Pai do mistério”. Sacerdote de Orunmilá, divindade da adivinhação. Idealmente, os babalawôs devem estar altamente versados no conhecimento dos rituais, eis que uma das suas principais funções é consultar o oráculo para os devotos.
[26] O Oriaté é um tipo de mestre de cerimônias. Sua função é realizar todos os rituais para a ordenação de um Olorixá. Como tal, ele deve estar extremadamente bem instruído nas diferentes prescrições e proscrições associadas a cada orixá individual e aos rituais de consagração. Ele também consulta o oráculo no terceiro dia depois da cerimônia de ordenação. Portanto, o alcance deste conhecimento deve ser muito amplo, ou seu axé é questionado pela comunidade.
[27] Alguns deles mesmos se ordenam no sacerdócio.

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Axé
Kafungi

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